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Parte 1 - O estúpido pode ser você

Updated: May 31, 2023

A alienação é uma ilusão disfarçada de realidade. Limita o seu campo de visão em decorrência do que o outro pensa...

Recentemente, me perguntaram se é possível a desalienação. Uma questão intrigante que me fez pensar mais a fundo sobre um tema abordado por tantos anos de história e pensado por tantos humanos que buscaram o porquê do descaso quanto ao cuidado de si: a alienação.


Alerto que esse assunto deve estar em pauta todos os dias, com questionamentos que coloquem em xeque as nossas convicções e nos deem um choque de realidade.


Para discorrermos a respeito, suplico o olhar filosófico no intuito de entendermos o sentido dessa palavra em sua prática, ampliando a nossa percepção. Assim, podemos definir uma opinião congruente que nos traga clareza, afinal para se pensar em alienação é preciso se afastar do risco de uma perspectiva alienada.


Partindo do conceito dito em Ciências Sociais, uma pessoa alienada é:


Aquela que se encontra alheia a si mesma. Ela não percebe a sua própria maneira de pensar e nem reflete sobre suas escolhas. É indiferente a si mesma e, por isso, ela se torna escrava às sugestões externas que chegam por diversos meios de comunicação.


Vamos além:


O esforço de raciocínio – para ela – é impensável. Além disso, utilizar-se de sua autonomia para encontrar respostas é uma carta fora do baralho. Subjuga-se ao outro que demonstra ter autoridade diante de si. Inferioriza-se porque não percebe o quão viciada está pela percepção alheia, pois pensar por si só seria um sofrimento... Como um viciado em drogas no período de abstinência.


Uma das principais características de uma pessoa alienada é a fácil aceitação de um ponto de vista de alguém que apresenta persuasão em suas palavras. Para a alienada, esse ponto de vista não pode ser colocado em dúvida e ela se dispõe a defendê-lo veementemente, se preciso for.


Vale a ressalva:


Se concorda com tudo o que uma pessoa diz, verifique se já não está alienado (a).


Eu trago para esse momento um pensamento de Michel Foucault. Para fundamentar sua tese, ele lembrou um diálogo em que Serenus pede conselho a Sêneca, o qual disse algo desbravador:

 

“Bem, vou dar-te o diagnóstico que te convém, vou dizer-te exatamente como estás. Mas, para bem fazer-te compreender como estás, vou dar-te primeiro a descrição do pior estado em que se poderia estar, que é, na verdade, o estado no qual se acha quem não começou ainda o percurso da filosofia nem o trabalho da prática de si. Quem não teve ainda cuidados consigo, encontra-se no estado de stultitia”. (FOUCAULT, 1982).

 

A partir desse diálogo, Foucault afirma que esse estado mencionado por Sêneca se encontra no outro polo em relação à prática de si. Seria como se você concedesse autoridade à outra pessoa para que decidisse a sua vida sem qualquer intervenção, mas que no final de tudo você – ainda sim – seria o (a) responsável pela ignorância presente em suas opiniões.


A alienação é uma ilusão disfarçada de realidade. Ela não permite você ter uma visão holística, mas limita o seu campo de visão em decorrência do que o outro pensa.


Uma pessoa alienada não pensa por si só.


“Stultitia” é um termo originado em Latim. É o mesmo que “estultícia”, que significa “estupidez”. Logo, “stultus” significa “estúpido”.


O stultus é aquele que não cuida de si, pois a sua estupidez é suficiente para deixa-lo à margem de sua própria vida. Ele prefere ser guiado como se fosse cego às circunstâncias e sua ignorância chega a causar indignação a quem o vê falando as palavras de uma pessoa que não é ele mesmo.


Ele não é autêntico. Podemos observar vários stultus vivendo em nossa sociedade. Muitas vezes os encontramos ao nosso lado... Às vezes, stultus somos nós mesmos.


O stultus é, definitivamente, a pessoa alienada.


Mas, é possível alguém nascer alienado?


Essa pergunta (acredite) já me foi feita e eu apreciei a oportunidade. Uma questão como essa nos faz sair da zona de conforto e pensar o que, talvez, nunca pensamos.


Esclarecendo o que já foi dito (como se precisasse), para uma pessoa ser considerada alienada ela precisa abrir mão do seu direito de raciocínio para obrigar a si mesma a acreditar no que o outro diz.


Um recém-nascido não possui consciência formada, por isso não pode raciocinar. Assim sendo, não pode abrir mão do que não possui. Portanto, não nascemos alienados, mas nos tornamos assim a partir de nossas vivências.


Essas vivências possuem representações em nós e seus significados influenciam o nosso modo de viver. Seguimos com os olhos vendados até aceitarmos que precisamos enxergar por nossos próprios olhos.


Para entender o processo de desalienação, Foucault identifica um problema, o qual é a imensa dificuldade de uma pessoa passar da ignorância para a sapiência.


Já que no contexto que estamos refletindo, uma pessoa se aliena à outra, então, para ultrapassar a ignorância, outra pessoa seria indispensável?


É possível alguém desalienar-se por si só?


Enquanto reflete sobre esse problema, em “A hermenêutica do sujeito”, Foucault cita os tipos de mestria e destaca a mestria socrática. Como ele mesmo a definiu, “a mestria do embaraço e da descoberta, exercida através do diálogo”.


Para ele, o outro é necessário; e mediante sua sábia intervenção, o stultus entende o objeto de sua busca pessoal: o seu próprio eu.


O outro, nesse caso, não pode ser um educador em sua forma tradicional que repassa conhecimentos escolarizados. Não pode ser um pai ou uma mãe que ensina modos e costumes segundo suas tradições, pois não há como garantir que os filhos seguirão seus ensinamentos. Jamais será uma referência religiosa, já que seus olhares apontam apenas para as convicções inflexíveis de sua instituição.


Mas, afinal, quem é esse operador que resgata aquele que se perde pela vida? Quem é o libertador do ser alienado?


Foucault afirma bem claramente, concordando com Sêneca:

 

“É aquele que estende a mão ao stultus e o puxa para o outro lado, onde o cuidar de si seria o princípio de seu novo compromisso. O operador que se apresenta é, com certeza, o filósofo”. (FOUCAULT, 1982).

 

É ele que traz provocações e tira o stultus do campo da ignorância, que duvida dos pensamentos e questiona as crenças limitantes. Tudo à base da compreensão e o diálogo é o meio pelo qual a ela acontece.


A mestria socrática, assim como várias correntes filosóficas, contempla a arte de filosofar como o guia para o reencontro com si mesmo. Trata-se do caminho para a autorreflexão, a dúvida, o autoquestionamento, a ressignificação... A desalienação.


É preciso do outro para acontecer a desalienação?


Eu digo que depende do quanto se está alienado. Nós mesmos podemos – por que não? – ser esse “outro” que nos conduz de volta à realidade, pois, às vezes, o que pensamos é fruto da preguiça de pensar inteligentemente.


Certo é que a filosofia nos ensina uma pergunta poderosa que nos protege do risco da alienação. Por isso, quando houver uma afirmação de alguém que se diz conhecedor de um assunto o qual você não tem domínio, oriento fazer a seguinte pergunta provocadora:


“Baseado em quê você está fazendo tal afirmação?”.


Diante dessa questão, o outro deverá apresentar o fundamento de suas palavras. Sendo esse fundamento comprovado, ele será inquestionável. Sendo originado a partir de uma experiência pessoal (o famoso achismo), será uma crença não comprovada e, por isso, passivo de dúvida.


O hábito de questionar certas crenças nos afasta da maioria.


Podemos abordar esse tema em todas as áreas, seja no trabalho, na religião, na família, na escola e até mesmo nas amizades. Mas, o importante é saber como estamos absorvendo as informações que recebemos.


Para alienar-se, basta a dependência ao outro, mas para desalienar-se basta permitir que seus olhos enxerguem o que há por trás do teatro da vida.

Anderson Cruz.

Escritor, terapeuta e licenciando em filosofia.




Nota: Vá direto para a Parte 2, clicando aqui.

 
 
 

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