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A violência nossa de cada dia

Atualizado: 13 de jan. de 2023

A dificuldade na construção da justiça social produz revolta e a consequente perda da razão, gerando desequilíbrio e conflito...

Pela manhã, numa padaria qualquer, a televisão mancha de vermelho sua programação com o sangue do meliante. O apresentador anuncia a morte do bandido, contorcendo-se num tom orgástico. Do outro lado da tela, cidadãos pacatos e de boa índole sorriem satisfeitos, enquanto tomam café naturalmente e comentam sobre o alvo certeiro do projétil. Na hora do almoço, as redes sociais divulgam a cena de uma briga no trânsito. O motorista, enfurecido, persegue a moto até atingi-la e destruí-la, ferindo o motociclista que fica desacordado na faixa de pedestres. Pelo rádio, há o anúncio da morte de um paciente que aguardava atendimento no corredor de um hospital público no mesmo instante em que transeuntes tentavam anotar a placa do carro importado de um jovem abastado e alcoolizado, foragido, após atropelar 8 pessoas no ponto de ônibus. O silêncio da madrugada é acordado pelo grito de socorro de uma mulher ameaçada pelo marido, revoltado com o final do relacionamento. A poucos metros dali, explode um confronto entre manifestantes e policiais. Os primeiros acreditam lutar por seus direitos enquanto o outro lado procura manter uma suposta ordem, outrora estabelecida.


A violência nossa de cada dia possui diversas nuances que se decompõem nos degradês das experiências. Independentemente disso, quase sempre é fruto da subjugação ou inexistência da racionalidade, paradoxalmente justificadas de modo racional como reações a ações prévias.


A exasperação parece estar por todas as partes.


Vejamos como a natureza responde violentamente aos desmandos a ela imposta — incêndios florestais, erupções vulcânicas, terremotos e tsunamis —, abrigando fenômenos de intensa agressividade, os quais transformam e destroem a nossa existência, assim como o mundo animal manifesta sua ferocidade na forma de subsistência ou sobrevivência e, contraditoriamente, gera um fato positivo quando nos referimos à seleção natural.


No ser humano, a raiva, o ódio, a autodefesa e o medo nos aproximam das reações mais primitivas, gerando atos violentos e, à medida que se distanciam da consciência, também podem ser consideradas ações puramente naturais, como afirmavam Hobbes e — mais tarde — Freud, o qual dizia ser a violência, porção constituidora do homem.


Contudo, há outros fatores que podem ser considerados.


Hanna Arendt, no século passado, refletiu sobre a banalização do mal. A nossa sociedade internalizou a violência, tornando-a uma trivialidade cotidiana, com uma visão niilista da existência humana como algo supérfluo e dispensável. Há em tal observação a perda do valor – inestimável – da vida.


Vivemos numa sociedade consumista, individualista e frustrada, sempre impelida a buscar mais, gerando conflito e insatisfação. Pierre Bordieu, filósofo e sociólogo, enxergava a violência como manutenção de um sistema de dominação de classes. Nesse caso, referiu-se a um outro tipo de hostilidade a qual somos submetidos, gerada pela violência econômica. Tais atos impostos pelas instituições resultam no retorno truculento contra as mesmas, conforme podemos deduzir quando Sartre manifestou sua preocupação com as formas institucionais da violência, deixando claro que um determinado ato violento escancara portais para outros.


Rousseau sugeriu que o homem é bom no seu cerne, mas a sociedade o corrompe, de modo que a competitividade gera perda de alteridade e a degradação das relações humanas, o que traz à tona o conceito de ‘’homem lobo do homem’’, criado e eternizado pelo filósofo Hobbes.


A dificuldade na construção da justiça social produz revolta e a consequente perda da razão, gerando desequilíbrio e conflito. Nessa seara, Bordieu desenvolveu o conceito de violência simbólica, onde o indivíduo dominado é transformado em cúmplice da sua própria subjugação a um modelo social compulsório.


A partir disso, podemos entender que a violência pode estar na opressão e na libertação como resposta a um ato imposto. Ambiguamente, carrega consigo — do ponto de vista moral — a rejeição, quando na sua forma opressora e, no mínimo, a compreensão, quando reação libertadora. Autores como Rousseau, Proudhon e Marx, desvelaram tal duplicidade em seus pensamentos, cada qual defendendo suas ideias.


Levando-se em conta que somos seres com necessidades diferentes, essa padronização de comportamento imposta por uma classe dominante culmina em reações agressivas, principalmente quando o ser humano não consegue se adequar a tais padrões, sejam sociais, culturais, econômicos ou comportamentais. Ao encontro dessa assertiva, Bauman, em sua análise social, declarou que as verdades estabelecidas durante a modernidade estão em descrédito.


Tais transformações são vitais na alteração do nosso comportamento — introjetadas e mandatórias —, principalmente no que se refere ao consumismo, abrindo a possibilidade de revolta contra os arquétipos sociais. Porém, tais condutas (embora presentes na humanidade) são passíveis de arrefecimento.


Sócrates, Platão e Aristóteles traziam a razão como forma de evitar atitudes primitivas e instintivas. Já Kant, no século XVIII, classificava as ações humanas em ‘’vontade’’ e ‘’desejo’’. A primeira seria moldada pela consciência, resultando em atos racionais, enquanto a segunda traria um componente meramente instintivo comparável ao dos animais, fazendo prevalecer a irracionalidade. Por isso, há o conceito de controle dos atos violentos através da supressão das paixões quando a vontade se impõe ao desejo.


Se por um lado nós vivemos uma banalização da violência na sociedade moderna, por outro prisma, talvez se justifique a atração humana pela truculência apresentada nos meios de comunicação, pois há – em tais atos – o florescer dos instintos comuns ao homem. A hostilidade é sempre uma possibilidade quando se trata da humanidade, mesmo brumada pela desejada racionalidade. Por esse motivo, a mesma brutalidade que nos chama a atenção para as telas traz um prazer vingativo com o sucumbir do agressor, conforme a nossa concepção do que é justo — da violência contra a vítima, emerge a nossa sede por justiça, unida ao nosso arrebatamento pela desforra colérica contra o infrator.


Como afirmava Nietzsche, a crueldade contida na violência — além da vingança — traz consigo um forte apelo para o que é violento como um espetáculo desejável e também sob o aspecto cultural.


O que dizer sobre o cenário de um touro agonizante aguardando a estocada final do toureiro soberano, insanamente idolatrado por milhares de pessoas numa arena exalando sofrimento?


Assim, é comum a atração por imagens violentas. Primeiro, devido à questão empática, inclusive na ficção, e em segundo lugar, pela observação curiosa da capacidade humana na imposição da crueldade ao próximo, especialmente quando esta ultrapassa todos os limites de uma suposta compreensão.


Há também o argumento biológico no interesse pela violência, pois o sentimento de prazer que a envolve comporta fatores genéticos e hormonais; e assim se dá a complexidade humana.


A violência não é única e nem a mesma. Insere-se nas diversas formas e contextos, trazendo consigo simbolismo e primitivismo de origem intrínseca e extrínseca. Nasce e perpassa a experiência individual; alastra-se. Suas razões atravessaram os séculos e se acomodaram nas sociedades como vírus mutantes, aperfeiçoados no alto contágio. A agressividade habita os humanos e imita a natureza, podendo manifestar-se quando menos se espera.


Dessa forma, a educação deve extrapolar o meio acadêmico e preencher as questões humanas, chegando ao âmbito do conhecimento filosófico, a fim de auxiliar no manejo das frustrações. Destarte, haverá uma maior possibilidade de convivência pacífica entre os nossos pares, por intermédio do controle dos impulsos. É imperioso lidar com nossas inseguranças e desejos para minimizar os efeitos deletérios das decepções, pois só assim conseguiremos limitar nossa intempestividade.


Muitos desenvolveram e ainda desenvolverão questionamentos com respostas diversas — concordemos ou não — sobre as ações e reações violentas no nosso mundo. O fato é que a violência está em toda a parte e nos habita, latente, cabendo ao ser humano evoluir no caminho da razão, da justiça social e do autocontrole, canalizando com sabedoria a energia e as emoções para o edificante.


E você, como expande sua racionalidade? Ainda fica chocado (a) com as demonstrações violentas exibidas cotidianamente na mídia ou se sente curiosamente atraído (a) por elas? Acredita que a violência é uma resposta inevitável às injustiças sociais?


Marcelo Kassab.

Escritor e Cirurgião dentista.




2 Comments


Marcelo Kassab
Marcelo Kassab
Feb 24, 2023

"Matar a vida para preservar a vida".

Não poderia encontrar melhor definição para o que a natureza nos mostra.

O ser humano também usa a violência como entretenimento. Inclusive a dos animais.

Comentário relevante e muito bem embasado.

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Guest
Feb 24, 2023

A violência é um fenômeno que, em geral, é intrínseco à vida e se inscreve no âmbito do irracional. Nesse caso, a violência é uma reação que abrange a Natureza em sua totalidade, porque até a erupção de um vulcão é uma reação violenta acionada por pressões no interior desse vulcão. A violência na selva exercida para preservar a vida é também similar à erupção de um vulcão. O animal mata porque precisa se alimentar para manter sua vida. Matar a vida para preservar a vida, dito assim no âmbito geral, é um paradoxo. Mas é a própria Natureza que obriga o exercício do paradoxo. Jamais diremos que o animal que mata outro deve ser punido pelo ato de matar.…

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