A imutabilidade da verdade... É verdade?
- Marcelo Kassab
- 1 de jan. de 2023
- 5 min de leitura
Atualizado: 18 de jan. de 2023
Podemos falar em verdade única, quando a compreensão provém da intangibilidade?...

O que é a verdade e como lidamos com ela? Existe uma verdade que se sobrepõe aos questionamentos ou esta é o resultado das nossas percepções de mundo, podendo variar subjetivamente? O tempo pode modificar ou trazer novas verdades?
A temática não se esgota na escrita de poucas linhas, por ser um assunto discutido há séculos e que ainda perdura, pairando sobre nossos tempos. Desse modo, o objetivo deste texto é fazer despertar questões e dar subsídios para o entendimento, debates e objeções às diversas teorias e conceitos sobre a verdade.
Quando retornamos à Grécia antiga, as narrações míticas eram os meios – através da cosmogonia – de busca para explicar os acontecimentos que abarcavam a realidade, bem como a materialização do desconhecido. Com o surgimento da Filosofia, o mítico não deixou de existir, porém, a diligência pelo conhecimento e pela verdade ganhou um contorno racional cosmológico.
Alguns eventos abrigados pela nossa história tomaram caminhos contrários àqueles considerados anteriormente como verdadeiros. O Geocentrismo foi uma verdade por muito tempo — apoiada pela Igreja Católica — até Nicolau Copérnico apresentar o Heliocentrismo, teoria que já era cogitada anteriormente também; exemplo de que a ciência jamais crava uma verdade absoluta.
Descobertas científicas são o começo e não o término da busca pela verdade. Dessa forma, conclusões apregoadas pela ciência podem e devem ser verificadas, formando uma base sólida para argumentações robustas e tomadas de decisão prática.
Ao remetermo-nos à Idade Média, vemos Agostinho acreditar no mal genético como sendo proveniente da transgressão de Adão, enquanto Pelágio propunha que o mal provinha da sociedade, sendo este estrutural e transmitido socialmente pelo mau exemplo dos nossos antecessores humanos. Embora ambos concordassem com a suposta transmissibilidade do mal, tal verdade abria searas para a discordância da forma como a mazela se perpetuava ao longo dos anos.
Ainda no Medievo, ao falarmos dos universais, Duns Scotus discutia a existência do geral sobre o indivíduo, defendendo assim, o realismo. Já Ockham, era partidário do nominalismo, enquanto apregoava a base empírica do conhecimento intuitivo e abstrato, focando na questão da singularidade. Podemos inferir que a perseguição contínua e necessária ao conhecimento pode levar a verdades contidas nas percepções diversas, mesmo quando se aborda um mesmo tema.
A crença monoteísta ilustra muito bem a querela. A interpretação da palavra de Deus pelas muitas religiões parecem divergir em vários aspectos, cada qual com suas argumentações, perante o Mesmo e Sua palavra. Quem estaria com a suposta verdade? Podemos falar em verdade única, quando a compreensão provém da intangibilidade? E quanto aos ateus? A inexistência de Deus pode ser considerada como uma crença, já que também não pode ser provada racionalmente? A existência de crenças distintas intenciona trazer luz a uma verdade absoluta – inexistente, nesse caso – por ser dependente dessas mesmas convicções.
Os céticos diziam que a verdade absoluta (caso exista) não pode ser acessada. O fato é que, mesmo não havendo uma verdade cabal, não quer dizer que não haja outros tipos de verdade, como as contextuais.
Segundo Nietzsche, podemos acessar as metáforas das coisas, mas jamais as suas essências, porque “a palavra é a reprodução do estímulo nervoso através dos sons”.
Dessa maneira, se há um trajeto entre a coisa real que vemos ou tocamos, passando pela nossa mente antes de ser proferida ou dita é porque, inevitavelmente, haverá uma mediação realizada pelo nosso intelecto; uma subjetividade implícita entre o que vemos e aquilo que declaramos, fazendo com que as assertivas nunca sejam uma expressão exata da realidade, denotando uma infinidade de possibilidades entre aletheia (verdade) e doxa (opinião).
Confuso? Admito que sim, mas a problematização faz parte da procura e aperfeiçoamento do conhecimento. A questão é que a verdade não aborda coisas, pois estas existem ou não. A verdade é um predicado que se aplica a enunciados.
Voltando à figura do cachimbo, podemos entender que o nome é uma convenção. A imagem nos traz uma referência, mas não o cachimbo em si. Não se trata do objeto, mas de uma representação do mesmo. Assim pode acontecer com aquilo que chamamos de verdade. Mesmo que haja uma verdade absoluta, nossa limitação nos impede de ter acesso a ela, pois, como citado acima por Nietzsche, precisamos de uma construção mental do que observamos para depois emitirmos os sons que exteriorizam nossas percepções. É a metaforização das coisas reais na intelecção humana.
Desse modo, nossas palavras não descrevem as coisas verdadeiramente, mas sim, as nossas relações com essas coisas, fazendo do conhecimento algo antropocêntrico.
Porém, tais convenções são importantes como perspectiva de convivência e pelo fator cultural nelas inserido. Crer em algo em que a maioria determina como princípio, segundo Nietzsche, traz a essência da verdade através daquilo que é considerado moral. Por essa razão, uma determinada crença pode ganhar status de verdade conforme a notoriedade intelectual de quem professa uma afirmação, bem como, o número de pessoas que o falante consegue reunir em torno de si. Por isso, muitos relacionam a verdade à ética e à moralidade. ‘’Eu sei que algo é verdade porque acredito que aquilo seja verdade’’.
Independentemente daquilo que nos faça mais sentido, tanto a verdade absoluta quanto a relativa podem trazer benefícios durante nossa estada terrestre.
Acreditar na verdade absoluta como algo num horizonte, mesmo que inalcançável, traz a humildade necessária para a busca constante de uma explicação racional da nossa realidade. Dessa maneira, estaremos atentos às bifurcações tendenciosas dos caminhos que nos levam, como imperfeitos que somos, às tentações dos desvios de conduta.
Contudo, quando acreditamos ser possível justificar todos os nossos procedimentos através do relativismo, avalizamos o discurso de Protágoras,que dizia ser o homem a medida de todas as coisas. Dessa forma, se a verdade for sempre relativa, não existirá, portanto, o erro, e sim a sobreposição de uma retórica a outra. Tal fato – já na Antiguidade– era alvo de críticas feitas aos sofistas por Sócrates.
Obviamente, como já dito, as vertentes e discussões filosóficas sobre o assunto não findam por aqui. Faz-se necessário aguçar o raciocínio e a curiosidade, inserindo o leitor no debate, pois várias concepções emolduram o tema, como as teorias correntista, pragmatista, correspondista, entre outras. Aliás, como provocação, vai a questão: se temos várias teorias sobre um determinado tema é porque temos também objeções a essas teorias.
Se há refutação a algo, podemos considerá-lo como sendo verdade e, mais do que isso, absolutamente verdadeiro?
Especialmente neste século de pós-verdades, não se trata de relativizar todos os conceitos, mas, através das metáforas construídas pelo intelecto (mediante contato com o mundo), criar, descobrir e aperfeiçoar concepções existentes e alicerçadas, transformando nossas vidas e beneficiando a humanidade.
Nesse aprendizado eterno, enxergar o relativismo da verdade como forma de exercitarmos nossa tolerância – devido à disparidade de comportamentos – pode ser útil, assim como absolutizar a verdade fundamenta a perseguição eterna do ser humano por um conhecimento irrefutável, remetendo sentido à sua vida, a fim de que a busca infinita em meio à existência finita valha a pena.
Marcelo Kassab.
Escritor e Cirurgião dentista.
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