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Negacionismo e corações sujos

As comunidades e a população de rua já são inevitáveis aglomerados, tornando utópico qualquer isolamento eficiente...

Ao flertar novamente com o livro Corações Sujos, do escritor Fernando Morais, foi impossível não correlacionar seu cerne com os nossos dias, bem como deixar de refletir sobre algumas crenças e seus poderes maléficos que irrompem as cortinas dos séculos.


No Brasil, entre 1946 e 1947, o grupo paramilitar Shindo Renmei ainda negava peremptoriamente a rendição do Japão durante a Segunda Guerra Mundial, assinada por Hirohito. O grupo, obnubilado pelo orgulho e pela honra, cometia crimes contra os compatriotas e descendentes que admitissem a factual derrota, pejorativamente chamados de makegumis ou derrotistas. Eram os corações sujos. Foram dezenas de imigrantes japoneses assassinados por não embarcarem nos delírios de uma minoria tresloucada.


Uma corrente negacionista que, através da manipulação dos números ou valendo-se da violência, procurava dissuadir e mascarar a realidade apontada para a inegável derrota japonesa e a consequente rendição.


Estamos no século XXI e nos deparamos com o negacionismo de mais uma minoria em voga novamente. Esta minimiza riscos e induz outros compatriotas, igualmente negacionistas, à formação de conceitos imprecisos, acentuados pelo descrédito que a parcialidade empresta a alguns órgãos de imprensa. Assim, a ciência, que deveria estar sempre a serviço da humanidade é maquiada por incertezas, através do bombardeio de informações desencontradas e contraditórias.


Já o cenário econômico suporta o discurso, mas é impossível desprezar a faceta política sob os ''EPIs'' das boas intenções.


Mesmo havendo hospitais à mercê dos cuidados de Brasília, a visão de responsabilidade pelo caos da saúde, pelas filas em busca de tratamento médico, pela falta de leitos e ausência de profissionais qualificados, têm sua atenção voltada aos governos estaduais e municipais, atraindo para estes, olhares midiáticos e os da população, tornando-se mais minuciosos em tempos de pandemia. Talvez, aspirações políticas adicionem à boa vontade de prefeitos e governadores uma diligência ainda maior à saúde da população na atualidade.


Já um presidente é sempre mais bem avaliado quando a economia nada de braçada. Algo impossível em meio à recessão causada pela pandemia que estagna, sufoca e abala os alicerces de qualquer estrutura econômica. É possível concluir que a preocupação com a saúde ou com a economia, apesar de justificáveis cada qual na sua proporção, tem como pedra angular as eleições dos cargos executivos que se avizinham.


Um país cujos alicerces estejam em frangalhos não reelege seus mandatários.


Contudo, também seriam negacionistas aqueles que fecham os olhos para a condição terceiro-mundista do Brasil? Como pedir para os mais de 10 milhões que habitam favelas sem acesso ao tratamento de água e esgoto tomem os propalados cuidados com a higiene e distanciamento social?


Réprobas, as comunidades e a população de rua já são por si grandes e inevitáveis aglomerados, tornando utópico qualquer tipo de isolamento eficiente e sendo estas, as primeiras atingidas letalmente por qualquer crise que represente uma gripezinha financeira aos abastados. Tal fato acrescenta mais álcool nessa fogueira de contradições e consome impiedosamente brasileiros mal assistidos em suas necessidades mais básicas, enquanto contabilizamos cadáveres e doentes vitimados pelos vírus do descaso e da corrupção de sucessivos des-governos.


É inevitável o endividamento do Brasil, e demais países, a fim de fornecer aos desassistidos condições minimamente adequadas para passar por esse momento sem tragédias ainda maiores que a própria pandemia já causa, especialmente aos países subdesenvolvidos.


Nesse vórtice de incertezas, fake news e impotência acumulam-se em discursos antagônicos e ambivalentes, gerando posições diversas e ecoando vozes de governos que trazem em seus DNA’s os genomas da descrença.


O mais sensato é, na medida do possível, continuar retardando a evolução da contaminação para que – mediante as mutações e aos ainda céticos da vacina (apesar do aumento de vacinados) – o combalido sistema de saúde brasileiro possa utilizar, de forma humana, leitos, respiradores, bem como assistir seus doentes, sem destinar aos médicos novamente a inglória tarefa de protagonizar uma versão atualizada de “A Escolha de Sofia” (Styron, 1979).


Minimizar a gravidade de uma pandemia, em que pesem todos os problemas consequentes a uma economia destroçada, é como pichar com epítetos aqueles que ainda mantém o mínimo de sobriedade e clareza respaldados pela comunidade científica. Sempre haverá entre as prioridades uma que deve ser alçada ao seu lugar de direito pelo bom senso.


Os atuais ''makegumis'' e seus corações limpos devem servir de exemplo a todos os outros corações, guiando através de suas batidas aqueles mantidos pelos grilhões de uma quarentena cognitiva com olhos cerrados e desorientados por atalhos que nos desviam das trilhas da realidade.


Marcelo Kassab.

Escritor e Cirurgião dentista.



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