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Cap. 01: O dualismo do ser

Atualizado: 3 de out. de 2024

Em algum momento da vida, somos instigados pelas circunstâncias a uma maior investigação sobre quem somos e para qual finalidade existimos...

Apresentação


Encontrar uma finalidade para a vida e tudo o que a corresponde não é uma tarefa simples, pois a complexidade do ser humano é tanta que nos exige a extirpação de definições próprias. É um assunto desafiador, mas também revelador, o que fascina qualquer que ousa a dar um passo além das doutrinas aprendidas.


Por conta da complexidade para falar a respeito, aviso que este artigo não encerrará o tema, pois apresentarei diversas análises que alongarão o material; por isso, eu dividi o conteúdo todo em uma série e cada capítulo dará continuidade à análise que iniciaremos a partir deste.


Por meio disso, então, eu proponho refletirmos sobre a finalidade de nossa existência, considerando o sentido de viver (ou de sobreviver) correspondente ao que acreditamos, o que pode ser visto como uma dádiva por uns e um fardo sofrível por outros.


Possível é que, em alguns momentos, esta série apresente ponderações aparentemente pessimistas, mas não passará do efeito que a fria investigação trará, já que estamos a refletir em uma vida que pode conter menos propósitos que se imagina – ou nenhum.


Para tanto, sugiro ler este material sem qualquer viés religioso e político, pois facilitará a condição racional para cada assunto a ser tratado de forma filosófica.


Que esta leitura incomode você, de modo que sua forma de enxergar a vida seja afetada.


As questões primárias


Em algum momento, nós somos surpreendidos por questionamentos que trazem a suspeita de não haver sentido na vida, mesmo quando estamos atarefados, com a sensação de dever cumprido, de utilidade plena. Nesse momento, percebemos o quanto buscamos realizações, mas que quando as temos, voltamos ao ponto de insatisfação, pois quase sempre (ou sempre) parece estar faltando algo.


Talvez, a crença no eterno sofrimento enturve os episódios de felicidade, abrindo margem para a valorização das dores que são causadas pelas frustrações, o que resulta na toxicidade emocional de alguém que, involuntariamente, afeta a todos os que estão em volta. Com isso, podemos ver pessoas se desenvolvendo em torno de suas insatisfações, onde as murmurações são mais frequentes que as comemorações.


Essa ausência indefinida (sensação da falta de algo) é uma percepção que nos provoca inquietação, movimentando “águas tranquilas” em nossas mentes; mas, basta uma dose de coragem, e pronto! Despertamos para duvidarmos da finalidade de nossa própria existência. Assim, passamos a perceber o quão envolvidos podemos estar na roda do vai-e-vem, com ações repetitivas e cenários entediantes que nos deixam inertes como quem olha para o nada e que, do nada, volta à realidade sem nenhuma novidade. Isso sendo verdade, então é bem verdade – também – que o sol ilumina só para nos lembrar da luta que temos de travar todos os dias, a fim de darmos – nada mais que isto – algum sentido a tudo o que construímos.


Contudo, para que se dê sentido a algo, aceita-se o pressuposto de que esse algo não possui nenhum sentido por si só. Nesse caso, falando da vida em si, a subjetividade se torna a produtora desse sentido; isto é (por esse parâmetro em que não há como encontrarmos sentido na vida, já que nela mesma não há), cada um de nós está fadado a viver para, então, definir o sentido de nossa própria existência.


Assim, então, chegamos em um ponto de reflexão que, para muitos, é um dilema:


Afinal, existimos para qual finalidade? Aliás, essa tal finalidade existe, mesmo?


Existindo (ou não) uma finalidade, a expectativa de futuro parece nos enganar, pois é verdade que caminhamos a passos largos em direção à morte, uma realidade de difícil aceitação para pessoas que vivem como se fossem eternas. Veja que, em aniversários (por exemplo), nós comemoramos o início de um novo ciclo, ignorando o fato de que cada dia representa um dia a menos de nossa existência; assim também é para cada ano que se passa. Também é verdade que nós estudamos por um bom tempo para obtermos o nível técnico suficiente, a fim de alcançarmos uma posição na sociedade, alimentando o ego que nos empurra em busca de status e reconhecimento. Além disso, acreditamos que devemos trabalhar muito para, assim, obtermos qualidade de vida, de modo que tenhamos conforto e liberdade financeira; e por conta de esforço excessivo, alguns sintomas aparecem como alerta de uma possível doença, o mínimo para nos levar a consultas e exames no intuito de preservação da saúde; pois, viver o máximo de anos possível é um dos objetivos que a maioria (pelo menos) tem.


Seguindo esse ritmo de atividades desenfreadas, muitos não percebem o tempo passar e, com isso, a sensação de que tudo está tão rápido é inevitável. Não aceitam a ideia de diminuir o ritmo e, tão menos, refletir sobre a finalidade de tudo o que fazem. Mas, talvez, seja melhor assim, pois, caso parassem para refletir sobre a finalidade de tanto esforço, e ainda percebessem que a existência pode ser mais curta do que se espera, a vida (para os tais) se tornaria menos interessante, fazendo-os desistir de suas metas pessoais e profissionais; e, ao fim, enxergariam que todos os seus planos não passam de “contra-ataque” às pressões psicossociais que sofrem, as quais exigem uma resposta posicional perante os estereótipos de sucesso.


Parece que toda essa luta não passa de planos e ações atenuantes, o que [a cada hora] nos revela o quão somos chantageados pelos desejos, pois são o que podem trazer um sentido imediato, passageiro, já que nada subsiste por muito tempo.


Parece que estamos designados a lutar diariamente, se quisermos permanecer acordados. Enfrentamos contingências pelo tempo que nos for possível para, enfim, sermos deixados por essa opressão, chamada “sobrevivência”.


Em vista disso, neste e nos próximos capítulos, refletiremos sobre o que nos faz existir, sobre o que define a nossa essência, sobre o que baseia a sociedade e, por fim, sobre uma finalidade para nossa vida (se é que há alguma).


A lógica do ser


Primeira metade do século XX. Guerras, revoluções, genocídios, crises econômicas, doenças descontroladas, sofrimentos e destruições afetaram diretamente a forma como se vivia, até então. A importância que se dava ao racionalismo (teoria de origem platônica, desenvolvida entre os séculos XVII e XVIII) passou a ser amplamente questionada, abrindo espaço para o olhar atencioso sobre os sentidos e percepções subjetivas.


Diante das crises que se passava, a vida foi tida como algo prescindível e sua importância julgada por quem se apoderou do ilusório poder de decidir o destino de alguém. Então, a existência humana passou a ser pensada e refletida por uma nova perspectiva; e é sobre isso que vamos discorrer durante este material.


Inevitavelmente, a relação entre essência e existência passou a ser refletida com mais disposição, trazendo-nos caminhos de crenças que geram divergências em distintas comunidades; e, embora essa reflexão seja em um terreno abstrato, tentativas de definições sobre esses temas nos revelam quão fantasiosa pode ser uma ideia quando não há um ponto de partida consistente. Isto é, falo da conclusão técnico-científica por meio de um objeto intangível, o que é perigoso se considerarmos que, para aquilo que é improvável, não pode haver definição.


Seguindo a diante, no campo de estudos da Filosofia é possível nos depararmos com duas visões: a essencialista e a existencialista. Considero-as como percepções importantes para enriquecerem nossas reflexões em direção ao que almejamos compreender, neste momento.


Então, se você é “forçado” a pensar sobre o sentido de sua vida em momentos de insatisfação ou, até mesmo, de sensações de inutilidade, importante é entender no que consiste essas visões antagônicas.


QUANTO À ESSÊNCIA...


Há quem tome um pouco de tempo para um questionamento sobre sua essência e o por que de existir; e isso muito se dá pela pergunta “quem sou eu?”, o que (para muitas pessoas) facilita ao pensar em uma resposta de definição. Parece ser uma pergunta idiota, mas se trata de uma autoprovocação poderosa, capaz de trazer-nos descobertas ou levar-nos ao complexo da baixa autoestima. Na verdade, uma indagação como essa exige uma autofiscalização compulsória, pois – no momento em que surge a necessidade de conhecermos a nós mesmos – aquilo que nos tornamos passa a não ser mais absoluto e, por isso, iniciamos uma jornada em busca de respostas que definem, com clareza, a pessoa que somos.


Falando – agora – do termo em si, “essência”, do latim “essentia”, significa algo anterior ao que existe; o que faz existir uma coisa. Nesse caso, a essência está antes da existência, o que para muitos é uma ideia inaceitável.


Contudo, na prática do dia a dia, há muitas definições do termo e isso se dá pela variedade de pontos de vista e pelo objeto em questão.


Considerando o histórico da Filosofia, Aristóteles e Tomás de Aquino estão entre os mais notáveis quanto à discussão de essência.


O primeiro revela que o ente tem múltiplos significados e que se define de diferentes maneiras; e, por isso, o conceito de essência não parece vir de um entendimento simples. Em um contexto popular, nem sempre a definição de essência é clara, pois muitos – ao serem questionados – definem essência por uma habilidade, aspectos físicos, ou (até mesmo) características de sua personalidade.


Para o filósofo de Estagira, então, imprescindível é sabermos distinguir a abordagem quanto à essência necessária e à essência acidental; sendo a primeira aquilo que impede um objeto de não ser aquilo que é, ou seja, o que ele é por si mesmo, que indica substância (grego: ousía); e a segunda, sendo aquilo que surge sem que haja uma predeterminação.


Para exemplificar, se você é atleta, não o é por si mesmo(a); portanto, ser atleta não é a sua essência; nesse caso, trata-se de uma essência acidental, pois caso não fosse atleta, não deixaria de ser você, pois poderia, ou não, sê-lo. Então, ser atleta não serve para definir quem você é; e assim vale para demais qualidades suas.


Para esclarecer, em sua obra “Metafísica”, o tal filósofo diz:

 

“A essência de cada coisa é o que ela é por si mesma”. (ARISTÓTELES, 2002).

 

Tomás de Aquino, por sua vez, esforçou-se por muito tempo para esclarecer o sentido, não só da essência em si, mas – também – do ente. Tal filósofo buscava entender a diferença entre os termos, assim como expor sua crença de que Deus é a substância primeira de todas as coisas e é encontrada nos diferentes seres.


Por influência de Aristóteles, ele reforça a ideia de substâncias compostas em forma e em matéria, mas traz como exemplo o composto “homem”, “alma” e “corpo”, afirmando não ser possível afirmar que um desses elementos isolados possua essência. Sendo constituída por matéria e forma, então, é possível dizer que essência é o significado daquilo que dela se define.


Tomás adverte quanto aos que afirmam que possa ser definida subjetivamente, isto é, de forma particular; sendo que, para ele, se assim fosse, não haveria essência no conceito universal, pois a essência representa algo que seja, necessariamente, comum a todas as naturezas.


Em cima disso, ele alega que os seres são identificados nos gêneros e nas espécies; com isso, a humanidade é a essência do ser humano. Humanidade, aqui, é o que faz o humano ser humano, falando de forma universal.


Contudo, são distinguidas duas propriedades de humano: espécie e indivíduo. Na relação entre esses dois termos, Tomás diz que “a designação da espécie em relação ao gênero realiza-se por meio da forma, enquanto que a designação do gênero em relação à espécie, por meio da matéria”. Assim, a espécie é universal; e o gênero, particular.


Por isso, a definição própria sob qualidades particulares é resultado do acidental, enquanto que aquilo que faz o ente ser o que é, compreende a essência, ou substância.


Para além disso, idealiza que tudo o que condiz ao ser é recebido de um princípio extrínseco, havendo uma realidade que seja a causa desse ser e de todas as outras coisas; sendo, então, Deus a única possível causa primeira da existência do ser.


Destarte, na obra “Suma Teológica”, ele afirma:

 

“Nenhum ente de existência causada é suficiente para ser causa da sua própria existência”. (TOMÁS DE AQUINO, 1273).

 

Caminhando por essas premissas, em que a definição de essência determina a existência, é preciso que haja uma fonte substancial, imutável, para que haja o ser. Assim, há de se entender que existem características universais que antecedem as individuais.


Assim sendo, aquilo que é produzido (ou criado) não compreende sua pré-existência. Por isso, não pode definir a primeira substância, a não ser por axiomas fundamentados por suas crenças, considerando aspectos doutrinários que lhe afetam durante o desenvolvimento pessoal.


Nesse caso, em cada um de nós há a estrutura da essência geradora, embora o existir nos distingue uns dos outros; e, portanto, o humano é um ser que foi feito para uma finalidade, mesmo que não haja o entendimento dela.


Para contrapor essa visão, há outra percepção filosófica; e isso veremos a seguir.


SOBRE O EXISTENCIALISMO...


O filósofo francês Jean-Paul Sartre foi um dos nomes de peso nesse movimento do século XX da Era Comum. Sua defesa partia do pensamento de que a existência precede a essência, a qual – para entendê-la – é preciso que seja gerada pela subjetividade.


Para explicar melhor: um objeto qualquer é fabricado pela inspiração de seu fabricante, o qual lhe dá uma finalidade. Isso sendo real, entende-se que é inviável acreditar que o executor construa um carro sem saber a sua utilidade. Com isso, para o carro, sua essência antecede sua existência.


Quanto ao humano, já é diferente, pois ele existe sem qualquer definição e nenhum conceito é razoável para definir sua natureza, a não ser após este surgir no mundo, experimentar, sofrer, desfrutar e descobrir a si mesmo; pois, cabe a ele definir a si mesmo.


O humano definir a si mesmo pressupõe a não existência de Deus; com isso, não há essência antes, mas depois do existir e essa ideia é o princípio do Existencialismo.


Em sua obra “O Existencialismo é um Humanismo”, ele revela:

 

“De início, o homem é um projeto que vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o que ele projetou ser”. (SARTRE, 1970).

 

Os existencialistas criticam fortemente as ideias metafísicas e mantém suas investigações naquilo que é tangível, desconsiderando qualquer crença no abstrato. Portanto, se o humano existe sem qualquer finalidade, cabe a ele mesmo concebê-la.


Outras questões


Tratamos, até aqui, de essência e existência, considerando os conceitos essencialista e existencialista. Você pode se encontrar em qualquer um deles, mas o indispensável é sabermos que temos, necessariamente, uma essência. Se ela é subjetiva ou universal, já é uma questão que foi discutida acima.


Quanto a esse dualismo, em algum momento da vida, somos (ou seremos) instigados pelas circunstâncias a uma maior investigação sobre quem somos e para qual finalidade existimos.


Contudo, por hora, proponho ir além no intuito de termos uma real clareza do assunto. Para isso, precisamos partir de algumas questões imprescindíveis.


Ei-las a seguir:


1. Se a essência nos precede e, com isso, nascemos com uma finalidade pré-determinada, ao existirmos nesse mundo de desafios (o qual exige de nós sabedoria, coragem e resiliência), o quanto nós somos suficientemente livres para determinar nossas escolhas?


2. Por outro lado, a subjetividade é o meio ideal para se definir a essência, ou estamos falando de uma interpretação pessoal daquilo que se conhece de si mesmo? Caso sim, é possível que o termo “essência” não seja o mais apropriado para representar o conceito existencialista.


3. Por último, nós (humanos) somos iguais ou somos todos diferentes? Independentemente da resposta, cabe-nos refletir sobre o parâmetro pelo qual se dá tal afirmação.


Essas questões serão respondidas a partir do próximo capítulo, onde eu irei tratar da estrutura matriz da formação do humano, concernente a todos, sem distinção. O fator cultural também estará em pauta para discorrermos, principalmente no que diz respeito às diferenças de crenças, constituídas pelas particularidades cognitivas.


Por enquanto, ficamos por aqui. Te vejo no próximo capítulo desta série.


Anderson Cruz.

Terapeuta Cognitivo Comportamental.

 

Para ler o próximo capítulo, CLIQUE AQUI.



14 Comments


Marcelo Kassab
Marcelo Kassab
Oct 02, 2024

Excelente tema, Anderson. Acho difícil a definição entre essencialista e existencialista. Penso numa essência modelada pela existência. Acredito que o termo "essência" já denota algo pré-concebido. Para mim, a existência atua na essência.

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Guest
Sep 28, 2024

Goste. Esse tema e muito importante.

Parabéns Anderson.

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Guest
Dec 20, 2023

Gostei muito. Muito obrigada por isso.

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Guest
Dec 20, 2023

Ótimo texto. Me levou a uma reflexão sobre o sentido da vida.

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Guest
May 16, 2023

Meu amigo Anderson como sempre nos trazendo temas relevantes para que possamos refletir nesse mundo onde temos mais perguntas que respostas. Mas que bom, pois nos faz pensar e de acordo com o aristotelismo, pensar em algo é instanciar na mente a essência universal do objeto do pensamento. Estes universais são abstraídos da experiência sensorial e não são entendidos como existentes em um mundo inteligível imutável, em contraste com o platonismo. Parabéns pelo ótimo texto. (Nemézio).

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Anderson Cruz
Anderson Cruz
May 16, 2023
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Meu amigo, o seu comentário é bastante relevante. Grato por estar aqui.

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