Sem sentidos
- Celisianne Leite
- 10 de nov. de 2023
- 3 min de leitura
Eu me entrego à triste constatação de que a existência é o acúmulo de coisas vistas, ouvidas, faladas e sentidas...
Acordo sobressaltado. O escuro e o suor noturno não traduzem o horror do sonho vívido.
Boca seca, corpo trêmulo, coração a ponto de saltar da boca e as lágrimas jorrando sem parar.
Sentado à beira da cama, eu tento recapitular o sonho terrível. Noto cheio de espanto que o escuro não se dissipa. Ainda tateando, eu levanto trêmulo e sigo a procura do interruptor; percebo, ao toque, que o ambiente mudou.
Assustado e perdido, eu me encolho abraçando meus joelhos. Passo um bom tempo coçando os meus olhos e forçando a dilatação da pupila, buscando um mísero raio de luz, uma silhueta, uma sombra, um contorno... Qualquer coisa que me tire dessa escuridão terrível.
Esqueço o pesadelo e jogo-me no chão num choro convulsivo; grito pedindo socorro e entre gritos e gemidos, eu constato que não existe ninguém que possa tirar-me dessa escuridão.
Perco a noção do tempo, arrasto-me de volta para cama e durmo de exaustão.
Acordo novamente atormentado por um sonho terrível. Recordo que estou sem visão e, agora, eu não consigo emitir ruídos.
Entro num desespero mudo, gritando a plenos pulmões sem emitir nenhum ruído. Questiono-me: “Será que perdi a voz ou a audição?”.
Bato os pés com força no chão e escuto o eco dos movimentos. A angústia aflige-me a alma.
O medo me domina por completo. Pois, como explicar que, além de cego, estou sem voz?
Levanto-me da cama e começo a tatear tudo ao meu redor, procurando água ou comida; e percebo que estou numa caixa sem portas ou janelas. Um quadrado de paredes lisas e frias. Sem objetos pequenos ou grandes, apenas uma cama e eu, enfurecido com essa loucura, reviro a caixa à procura de uma abertura.
Pulo, choro e desespero-me; caio no chão estupefato com a minha condição; tento fazer bastante ruído, mas a ajuda não chega. Esgotado, faminto e sedento, entrego-me ao cansaço deitado no chão.
Volto ao mesmo sonho terrível e quando desperto, além da escuridão e da mudez, eu percebo que também estou sem audição. Corro por todos os lados – a cama saiu do cenário.
Corro livremente, sem empecilhos, de um lado para outro. Da caixa vazia eu não escuto um mísero ruído. Dou cabeçadas e chutes ao acaso, tento sentir as paredes e o chão; soco freneticamente até sentir escorrer um líquido...
A dor é lancinante! Mas, esse é o único jeito de perceber a existência.
A dor é minha última afirmação de vida. E eu choro no escuro, na mudez... E no silêncio, o meu ser vai se esvaindo sem encontrar mais solução. Desmaio sem forças mais uma vez. Adormeço e volto a viver o pesadelo de não sentir.
Sem ver, ouvir e falar, o que eu sou? O que será de mim? Será que eu acordo? Não sei, pois já é tudo trevas e escuridão.
Eu grito... O grito mudo dos desvalidos dos ignorados; dos sem voz, ou vez.
Mesmo que eu queira, não escuto (nem sequer) um ruído. É a solidão ecoando no meu ser.
Após ter a dor arrancada de mim – sem que eu possa sentir nada de bom ou de ruim – como eu poderei afirmar que existo?
Deitado no chão, sem sentidos, eu me entrego à triste constatação de que a existência é o acúmulo de coisas vistas, ouvidas, faladas e sentidas. Por isso, atenda o meu apelo; não me largue na caixa do esquecimento. Carregue-me a todo o momento na memória ou no coração; eu nem ocupo tanto espaço assim.
Sigo com você, sem prejuízo. Apenas deixe-me acompanhar-te para saber quem eu sou, o que eu sinto, o que eu penso, o que vejo e o que digo. Quero ser voz ativa no seu trajeto.
Caso não se lembre de quem eu sou, vou refrescar a sua memória:
Alguns me chamam de senso crítico; uns, de bússola moral; outros, de caráter. Na verdade, eu sou o acumulado dos sentidos. Sou tudo o que você guardou para usar mais tarde.
Então, imploro-te: não me tranque num caixa sem portas ou janelas. Use-me, alimente-me, converse comigo, pois nós somos um; e a nossa jornada está só começando.
Acordar de um pesadelo é usar os sentidos e alimentar o senso crítico para ser quem é.
Cleisianne Leite.
Fomanda em Biblioteconomia.
Texto fortíssimo e com uma imagética que nos transporta e faz enxergar/sentir palavras e movimentos.
Simplesmente incrível