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Subjetivismo circunstancialista

A grande crise consiste em algo como o relativismo epistemológico, lógico e moral da modernidade que faz avançar um tipo de secularismo marcado por militância antirreligiosa.

Dos gregos antigos aos modernos (como Nietzsche, pensador alemão do século XIX), a história do pensamento filosófico foi marcada pela busca da quididade de um ente; em outras palavras, pela essentia (essência) de algo que nossa experiência, ou pensamento, põe em questão.


Por exemplo, você está com o presente texto à vista e, no entanto, sem se dar conta, sabe de imediato o significado das letras e da mensagem que, aqui, se descerra. Sua compreensão da mensagem é justamente a compreensão da essência. Poderíamos, assim, equiparar essência com discernimento. Todavia, na modernidade, o entendimento de que a capacidade humana de apreender a essência universal de um ente em sua universalidade era – no mínimo – problemático, exigindo uma crítica e o abandono.


Emergiu, então, no Ocidente, certa dúvida a respeito do poder da racionalidade humana em determinar o ser de algo.


Alguns movimentos literários são expressões dessa crise do pensamento. Em 1916, diversos artistas [ou autores] fundaram, em Zurique, o Cabaret Voltaire. É nesse contexto que o poeta romeno Tristan Tzara (1896 – 1963) inaugura o movimento Dadaísta, em meados da primeira guerra mundial, junto aos artistas Hugo Ball (1886 – 1927) e Hans Arp (1886 – 1966).


O dadaísmo, cujo significado não tem sentido aparente em francês (visto que se origina do “dadá”, nada mais que “cavalo de madeira”), marca justamente o caráter de irracionalidade. Era um modo de expressar certo descontentamento.


O ilógico (ou irracional), isto é, absurdo era o que melhor caracterizava a época e ainda tinha finalidade de enfrentamento à burguesia.


“A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque a beleza está morta". (TZARA).


O que está em questão no surrealismo, herdeiro do dadaísmo, é muito mais algo da ordem do mundo onírico. Portanto, ligado, como dizem os psicanalistas, ao domínio do princípio do prazer, que tem por oposição o princípio da realidade. Algo assim como o delírio acordado, o mundo dos sonhos e da fantasia – fabulador como uma criança imaginativa [1]. Oficialmente, foi criado em 1924, mas, desde 1919, obras com esse estilo já eram produzidas. Seus maiores representantes são os artistas espanhóis Salvador Dalí (pintor) e Luis Buñuel (cineasta).


As obras se debruçam sobre os desejos ocultos, os impulsos primitivos que são afastados pela razão. Os surrealistas reproduzem uma realidade peculiar que transcende o cotidiano, sendo a questão da luta contra a burguesia ― como expressão da ordem vigente ― menos intensa.


Em uma linha do tempo, movimento está historicamente localizado entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, após a derrota do império alemão, a Europa foi redesenhada e novos países surgiram. A Rússia, por sua vez, abriu uma nova trajetória política e econômica após a revolução de 1917. Alianças foram confirmadas ou criadas; e tratados foram assinados, como o de Versalhes, o qual trazia imposições severas à nação alemã. De qualquer forma, todos os países europeus se viram imersos em uma crise econômica.


Nesse cenário de reconstrução (sacrifícios e incertezas), nasceu o movimento surrealista que abandonou essa pesada realidade sociopolítica para explorar o inconscientetalvez este tivesse alguma resposta a respeito do sofrimento psíquico.


Desse modo, sua principal influência não artística foi o psiquiatra Sigmund Freud (1856 – 1939), inventor da Psicanálise e investigador do inconsciente humano. É, portanto, nesse movimento de crise da razão que se concretiza propriamente o que conhecemos como globalização.


Globalização é o fenômeno de integração econômica, social e cultural do espaço geográfico, em escala mundial. É caracterizada pela intensificação dos fluxos de capitais, mercadorias, pessoas e informações, proporcionada pelo avanço técnico na comunicação e nos transportes. Nosso presente mundo é o que melhor expressa a ideia de globalização. Hoje, nós podemos conversar em vídeo e/ou áudio com qualquer pessoa, em qualquer local do globo. O espaço-tempo foi suprimido ou, no mínimo, subsumido.


Não bastasse toda a diversidade de perspectivas [por assim dizer para me referir a um mundo plural], ainda temos uma crise presente na ciência, seja por sua negação (a anticiência), seja por conta (no caso da física quântica), isto é, do mundo subatômico ao postular o conceito de Princípio da Incerteza que, em suma, marca a dificuldade de terminar com precisão a objetividade de uma observação, pois o observador – no caso, o cientista – interfere na observação.


Não somente a Filosofia, mas as artes, a literatura, a arquitetura e a ciência sofrem nesse período histórico. Não fosse apenas isso, está claro que as duas primeiras guerras mundiais em torno do Capitalismo versus Comunismo do século XX, assim como as crises políticas condicionadas por tais modelos [por exemplo, o problema de se o estado deve ser máximo ou mínimo, isto é, se devíamos nos orientar mais por uma visão] se reverberam no capitalismo do século XXI, de modo que – mesmo após a vitória do capital – o debate neoliberal e progressista está ainda em questão como problema da crise de nossa época [que ainda não se desvencilhou do século XX]. Ou seja, o problema da ideologia política como problema mesmo após Terry Eagleton decretar o fim da sociedade ideológica é ainda questão que nos traz algum mal-estar [2].


O mundo mesmo aparece [3] como crise.


A grande crise, ao nosso ver (além dos caracteres acima), consiste em algo como o relativismo epistemológico, lógico e moral da modernidade que faz avançar um tipo de secularismo marcado por militância antirreligiosa. O mundo se torna liquefeito, fragmentado. A unidade se dissolve na efemeridade da experiência e das sensações ― ligadas, obviamente, ao capitalismo (diga-se de passagem). Em Filosofia e, mesmo, na filosofia da linguagem, experimentamos [em nossa época] a crise como crise de uma linguagem, cujo caráter é o de artificialidade; isto é, a consistência que temos a respeito da coisa, por exemplo, de nosso “eu”; e do ente à vista (como exemplo a mesa sob a qual agora escrevo) é nada além de uma falsa consistência oriunda da linguagem, posto que o mundo enquanto tal ― nos informam as ciências ― é dinâmico, incerto e impermanente (no fundo que diferença faz? Ou, então, por que é necessário problematizar nesse nível?).


Nada nos restaria, senão uma singular ilusão. Não há verdade. Não há certezas. Tudo é apenas jogos de linguagem, nomes, categorias mentais e, mesmo, a vontade de poder como o que viabiliza a eternização do efêmero. A Razão, assim, não daria conta de explicar o mundo. Apesar de o problema ser da maior importância e da mais difícil solução, nós (pensadores) não podemos deixar de pôr tudo em questão; até mesmo os problemas!


Não poderíamos pensar algo assim como o uso da incerteza, da insegurança, do niilismo... Enfim, de toda negatividade de nossa época por parte do mercado ou, até mesmo, da política? Sim, podemos!


Daniel Bell (1919 – 2011) entrou em evidência pelas suas posições acerca do fim da ideologia, expostas na obra The End of Ideology (1960), onde postulou o declínio das ideologias de classe nas sociedades capitalistas. Segundo Bell, os velhos temas do debate ideológico entre "Esquerda" e "Direita" já não servem para responder aos problemas com que nos defrontamos no mundo e na nossa própria casa. Como a ponta da lança da "teoria da convergência", que apareceu nos finais dos anos 50, Bell defendeu que a estrutura social era mais realmente modelada por imperativos técnicos e econômicos que pela ideologia política. No entanto, no Brasil de nosso período (2023), a ideologia política exerce grande influência nos comportamentos, na expressão linguística e nas decisões políticas.


Queremos, com isso, explorar outro ponto: a noção de ideologia política como uma enorme simplificação da realidade ― isto é, da totalidade dinâmica (outrora mencionada) que a metafísica em seus dois mil anos não conseguiu definir satisfatoriamente. Em nosso país, a simplificação consiste na adesão irrestrita dos dogmas ideológico-políticos (“direita” ou “esquerda”) como norma de fé.


Ora! Nas últimas eleições (2022) vimos tal questão na disputa de narrativas e nos crimes de ambos os lados. Acreditamos, assim, que a adesão é tanto mais intensa quanto mais for a fragilidade psicossocial e econômica de uma dada população. Assim, acreditamos na ideologia política (sobretudo) como um dispositivo de explicação, capaz de determinar [delimitar] o espaço ontológico-existencial. Ou seja, a ideologia simplifica a complexidade do mundo. Nisso, ela cria espaço que acolhe os nossos modos de ser e existir (ontológico-existenciais), assegurando um espaço de ser e estar [circulação de pensamentos, experiencias e afetos].


Algo assim ocorre relativamente aos ideários e ideais políticos, consoante ao problema diante da indeterminação ontológica [isto é, de nosso ser-aí humano] na hora de justificar-se racionalmente no espaço público, por exemplo, através das redes sociais. Ou seja, a ideologia nos ajuda a nos apresentar publicamente sem, no entanto, precisarmos sermos perfeitamente racionais ou coerentes.


Diante de alguns problemas (a exemplo do aborto, da eutanásia e coisa do gênero),não só as respostas são dadas em vista da ideologia, como contém outro traço fundamental: o subjetivismo circunstancialista.


Consiste em algo assim como a doutrina filosófica apreciada até mesmo de modo não consciente de que a verdade é a mentira individual. Cada sujeito teria a sua verdade, mas a ideia do sujeito é que projetaria o objeto. O subjetivismo atribui a fonte a cada um; e cada um tem a sua própria verdade. No entanto, talvez, seja impossível – por conta dessa visão relativista – haver entendimento comum [consenso].


Não é necessário ir longe para pôr em questão o absurdo. No caso, por exemplo, o mais gritante é que a ciência não seria capaz de dizer a verdade. Nem, portanto, poderia legislar sobre alguém. O problema da verdade não se encerra na questão de aceitar o entendimento individual dos fatos da vida, ou a forma como cada um vê e interpreta a vida. Existe, sim, uma verdade aparente, limitada às questões cotidianas, e outras possíveis funções práticas dos objetos, quando pode-se dar-lhes outros usos.


Contudo, a respeito de questões morais ― por exemplo, a respeito do bem e do mal, do crime, dos fins da vida ― não poderíamos dizer nada, já que cada um tem seu próprio modo de avaliar o mundo, sendo todos estes modos igualmente verdadeiros [porque, no subjetivismo, a verdade se origina apenas no sujeito]. Em miúdos, significa que o terrorismo, a tortura, o assassinato, o estupro não poderiam ser penalizados, ao menos se o princípio (de que a verdade está no sujeito) for levado a cabo às últimas consequências; pois o terrorista, o torturador, o assassino têm sua verdade.


Nosso mundo, assim, é a crise [4].


Thiago Carvalho.

Psicólogo e pós-graduando em neuropsicologia.

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[1] Nessa parte estou começando a mostrar como o mundo passou de um mundo mecanista, lógico, cientificista, onde as cosias são certas, para um mundo cheio de incerteza, incoerência, indeterminação. Comentar sobre o dadaísmo e o surrealismo é um modo de me apropriar do literário como plano de fundo que me permite apresentar mais que argumentos lógico-conceptuais. É, assim, um modo de mostrar o fenômeno na sua aparição histórica.Portanto, não me interesso propriamente pela arte nesse texto. Ela é meio para atingir outro fim maior [o texto].


[2] Quis mostrar que o século XX foi construído por sucessivas crises que, mesmo após a superação de algumas (isto é, mesmo após a vitória do capital, ainda assim a ideologia do século passado sobrevive no século XXI, mostrando (assim) que nós continuamos no horizonte crítico.


[3] O "mundo aparece" significa que o mundo nos aparece (como se tivesse a intenção de se mostrar para nós) como crise, isto é, crise como indeterminação e ponto crítico ou de ruptura. É uma expressão de origem fenomenológica. O fenômeno é tudo que está à vista. Sendo o mundo o que temos à vista, o mundo nos aparece (como fenômeno). Aparecer significa modo existencial e histórico do mundo-ser.


[4] Ruptura de horizonte, marcos, hierarquia, conceitos, sistemas, etc.



2 Comments


Olá, Thiago. Parabém pela profunda escritura sobre o sujeito humano.


Adscrevo: Crise dos sujeitos (nós, humanos), modernidade líquida e sociedade ideológica sem fim. Afinal, não nasce tudo no campo das “ideias”? Se sim, essa “ideia” de acabar com a crise ideológica pode ser uma ilusão, ou uma constante busca, visto que, à medida em que se almeja esse fim, este próprio esforço, pela diversidade humana e do pensar, nos deixa nos devires flutuantes, pois a “eternização do efêmero” (grifo o autor) já o é uma “verdade reconfortante”, parafraseando Noam Chomsky. Ademais, sobre as “circunstâncias”, eis uma costura com teu texto: “o interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada”, uma vez que…

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Thiago Carvalho
Thiago Carvalho
Jan 22, 2023
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Olá, muito obrigado por seu comentário, Alberto.

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