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Um inimigo salvador

As pessoas mais íntimas são as que mais nos decepcionam pelo fato de criarmos altas expectativas de reciprocidade...

Tem uma passagem bíblica que pode nos ajudar a refletir no quanto surpresos podemos ficar ao sermos socorridos por quem menos esperamos. Muitas vezes, as pessoas mais íntimas são as que mais nos decepcionam pelo fato de criarmos altas expectativas de reciprocidade das mesmas. Parece uma inversão de valores a quem busca relacionar-se com os que mais agradam sua faculdade crítica. Porém, será que as expectativas nos trazem ilusões afetivas?


No evangelho, segundo de Lucas, capítulo 10, Jesus é perguntado por uma autoridade judaica sobre o critério para receber a vida eterna. Uma dúvida que talvez fosse a mais comum daquela época entre o povo de Israel, haja vista o falatório surgido desde João Batista, o qual pregou sobre a necessidade de compartilhar seus pertences com os mais necessitados.


O registro desse diálogo entre Jesus e o doutor é marcante. É uma das passagens mais lidas nos templos religiosos, mesmo sendo uma das menos entendidas.


Antes de contar uma famosa parábola, Jesus o respondeu com duas importantes perguntas:

 

"O que está escrito na lei? Como a lê?". (Vers. 26).

 

Note que ele dividiu duas percepções: a escrita da lei e a interpretação dela.


Ele estava prestes a mostrar que algumas tradições, vividas há séculos, precisavam de um olhar holístico para que todos entendessem a percepção de que religião não era critério para a salvação almejada.


O doutor da lei citou respondeu citando o amor necessário a Deus e finalizou, dizendo:

 

“... E ao teu próximo como a ti mesmo”. (Vers. 27).

 

Jesus disse para ele seguir seu caminho e fazer conforme estava escrito. Porém, o perguntador quis saber quem deveria ser o seu próximo, citado na lei.


A partir daí, Jesus deixou a parábola do Bom Samaritano:

 

“Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. Ocasionalmente descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. De igual modo também um levita, chegando àquele lugar, e, vendo-o, passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu te pagarei quando voltar”. (Vers. 30 a 34).

 

A história teve um desfecho impactante e surpreendeu a todos os que estavam ouvindo. Tudo porque – na história – a personagem que socorreu o judeu ferido não foi outro judeu, mas um samaritano.


Jesus perguntou ao doutor quem era o “próximo” daquele que esteve caído e ele, decepcionado, disse:

 

"O que usou de misericórdia para com ele". (Vers. 37).

 

Como você deve saber, samaritanos eram vistos como inimigos pelos judeus e, por isso, tratados como gentios (assim também os samaritanos viam os judeus). Suas relações estavam pautadas em guerras de poder desde a morte do Rei Salomão, o que impactou ainda mais aos ouvintes. Os de Samaria eram para os judeus como as pessoas, de hoje em dia, que são chamadas de “desviadas” ou “mundanas” por muitos que fazem parte do Cristianismo e veem a liturgia como sua bússola espiritual.


O samaritano da história fez o que a maioria dos judeus não estava preparada para fazer, pois as tradições judaicas daquela época eram manipuladas por líderes alienadores que faziam do seu povo um meio de riqueza. Bondade, caridade, perdão, amor e compreensão não eram práticas de interesse dos que vestiam túnicas sacerdotais.


Aqui cabe uma pergunta:


Por que Jesus inseriu um "inimigo" na parábola para socorrer o judeu ensanguentado?


Aí é que está a essência do evangelho dele. Por meio desse cenário, mostrou que a bondade deve ser estendida a qualquer pessoa que estiver ao nosso alcance e não apenas os da nossa comunidade. Fazer parte de uma religião cristã não significa ter as práticas que Cristo ensinou, pois para isso é necessário uma interpretação segundo o olhar dele.


O evangelho nos traz o seguinte pensamento:


Um ser humano deve ser importante como qualquer outro, independentemente de classe social, cor, gênero, escolaridade, nação e religião professada.


Ele revelou a boa nova fora do campo religioso. Portanto, não se deve institucionalizá-la, pois, assim sendo, não será evangelho.

Anderson Cruz.

Escritor, terapeuta e licenciando em filosofia.

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