Vidas recortadas
- Jorge Gomes
- 19 de dez. de 2022
- 3 min de leitura
Não há espaço para dor, sofrimento ou despedida. Há muitas pessoas do "bem" censurando as pessoas do "mal"...
O universo das redes sociais parece que é coberto por pessoas felizes, com vidas corridas, importantes, saudáveis e divertidas. Um verdadeiro paraíso na Terra.
Longe de práticas frugais é o ambiente que esbanja fartura, sapiência, alta competividade e perfeição. Não é interessante seguir o inverso.
As pessoas fazem o absurdo para estarem na frente; não medem esforços, se esgotam nos títulos, se perdem no tempo ao falarem sobre si mesmas e enfrentam o outro como inimigo.
O “efeito manada” atinge a todos, com frases motivacionais que levam a entender que se resolve um problema apenas com pensamento positivo e atualizações de fotos e vídeos para mostrarem o quão são superiores.
Faz-nos acreditar que nossa autoimagem melhora quando postamos uma foto de uma comida, uma roupa nova, uma caridade, um livro da moda ou evento mega-importante.
Esse novo estilo de vida (vidas recortadas) seleciona os melhores momentos, faz as pessoas acreditarem que o mundo consiste apenas em coisas boas.
Na obra "Amor líquido" está escrito:
"O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros". (BAUMAN, 2003).
Essa busca por recompensa e reconhecimento está levando as pessoas ao abismo.
É a negação do mundo físico em prol do mundo virtual, pois neste mundo palpável é mais difícil editar nossas imperfeições, nossas falhas. Não há como revisar.
Os perfis são mais ornamentados que revistas de astros e estrelas de Hollywood. Não há mais preconceitos; é brega se manifestar, ou, agradável se estiver dentro do nicho.
Essa sensação de poder criar facilmente novos amigos gera nas pessoas o poder de substituição e "filtragem", aumentando as classificações e ao mesmo tempo a rotatividade nas relações.
Não há o desafio de lutar pela amizade, pela nova relação, pelo novo afeto, lutar no período de sentimentos negativos, discutir sobre os problemas... É mais fácil descartar. Não há esforço – como isso fosse bom –, mas do mesmo modo que filtramos nós somos filtrados.
Como se fosse uma ditadura, devemos seguir de uma forma (a mais hipócrita possível) para, assim, permanecermos no grupo. Quem questiona o espaço o qual está inserido é convidado a se retirar.
Antigamente, fazia-se amizade com o vizinho e – em muitos casos – perdurava para toda a vida. Hoje, no primeiro desafio da amizade, um bloqueio, ou um adeus, é muito mais comum.
É uma busca sem fim. Temos a impressão que aparecerão pessoas "melhores", desde o físico até o lado espiritual. Há muitas pessoas do "bem" censurando as pessoas do "mal".
Evidente é que não há espaço para dor, sofrimento, prantos, velório ou despedida. Ali reina o mundo do bem-estar e do prazer absoluto. Quem pensa ao contrário é oprimido e provavelmente recebe menos likes.
Nietzsche defendida a contemplação da dor como passadouro à alegria. Em "Crepúsculo dos Ídolos", disparou:
"O que não me mata, me torna mais forte". (NIETZSCHE, 1888).
Isto é, aquilo que me provoca sofrimento, sem ser a morte, me serve como um fortificante da alma.
O fluxo de informações mecaniza, conduz a comportamentos repetitivos e irreflexivos. Turbilhões de estímulos dificultam o cérebro a produzir conexões essenciais para a saúde mental.
Ao longo dos anos, as pessoas vão se sentir mais pressionadas a terem uma vida que a maioria das pessoas não tem, o que não passa de mera imagem. Não é à toa que no ranking global da felicidade, o Brasil está em declínio. Paradoxalmente, a visibilidade da expressão da felicidade segue aumentando nas redes.
Expor a felicidade não significa ser feliz e tampouco preencherá uma vida vazia, pois, quando escondemos nossas dores, podemos potencializá-la e – consequentemente – sermos mais infelizes e improdutivos.
É mais interessante reconhecer e aceitar o problema. Ignorá-lo não significa dissipá-lo, pois ele pode surgir de outras formas e até pior. Identificar é o passo para começar a tratá-lo e enxergar que isso faz parte da vida humana.
Desse modo, que possamos encontrar a felicidade através da infelicidade, do sofrimento, da dor, das dificuldades que a vida nos apresenta; perceber que sentimentos positivos e negativos fazem parte da nossa essência.
Com isso, procuremos o melhoramento humano, atentando-nos aos valores; não restringir ao mostrar, mas ao tornar-se. Não apenas para competir, mas para somar com a humanidade, com caráter e sensatez.
Disse bem o Aristóteles:
"A felicidade só resulta no cultivo da virtude". (300 AEC).
Jorge Gomes.
Pedagogo.
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